Governos que não responderam bem à pandemia serão responsabilizados nas urnas e a derrota de Donald Trump nos Estados Unidos já é um exemplo disso, avalia Anna Petherick, professora de políticas públicas na Universidade de Oxford.

Pesquisadora do Brasil desde antes da pandemia, Petherick tem acompanhado as respostas do governo brasileiro à crise de saúde pública para o Oxford Covid-19 Government Response Tracker (Monitor de Oxford das Respostas Governamentais à Covid-19, em tradução livre).

Formada em ciências naturais por Cambridge e tendo estudado corrupção no Brasil em seu doutorado em Oxford, a professora da universidade britânica avalia que teria sido muito difícil evitar a segunda onda da pandemia no país, já que mesmo nações europeias muito mais ricas tiveram dificuldades nesse sentido.

Ela afirma, no entanto, que os sinais de alerta de que a situação iria piorar no Brasil já estavam presentes desde setembro. E que os governos estaduais e federal foram muito lentos em responder. “A velocidade de resposta tem forte influência na taxa de mortalidade”, afirma.

Segundo Petherick, as deficiências do SUS (Sistema Único de Saúde) em Manaus já eram conhecidas desde antes da chegada do coronavírus e a primeira onda da pandemia no Amazonas deveria ter servido de alerta definitivo. Além disso, um mês antes da crise atual de falta de oxigênio nos hospitais, médicos já alertavam que esse problema iria acontecer.

A pesquisadora Anna Petherick, durante entrevista via zoom

BBC
Para Anna Petherick, Brasil teve uma resposta extremamente descoordenada com relação à pandemia

“Levou muito tempo para o governo tomar uma atitude. E, mesmo então, vimos que não há uma vontade política forte”, diz a professora.

Segundo ela, diante do aumento do número de casos e de mortes no Brasil, e da emergência de novas variantes locais, é evidente que as medidas de isolamento precisam ser retomadas, ainda que os políticos estejam com receio de tomar essa atitude.

“Gostaria de (poder) dizer que estou otimista, mas acredito sinceramente que os próximos meses serão muito, muito difíceis”, diz a professora. “No caso brasileiro, está muito claro que medidas de contenção e de isolamento precisam ser retomadas. Não há dúvida.”

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – Num momento em que passamos por um segundo colapso da saúde em Manaus, qual é a sua avaliação da resposta do governo brasileiro à pandemia?

Anna Petherick – Sabíamos antes da pandemia que o SUS era muito deficiente no Amazonas, em termos de estrutura e de recursos. Recebemos então um alerta definitivo, que foi a dura forma como o Estado foi atingido na primeira onda.

Avalio então que a resposta à segunda onda foi decepcionante. Porque os casos estavam aumentando desde setembro. E quase um mês antes da crise recente de falta de oxigênio nos hospitais, os médicos já avisavam que isso iria acontecer.

Ainda assim, levou muito tempo para o governo do Estado tomar uma atitude. E, mesmo então, vimos nas últimas semanas que não há uma vontade política forte. Tem sido o Judiciário que tem forçado os Estados a tomar medidas. Manaus e o Amazonas poderiam estar fazendo muito mais neste momento.

Kelvia Andrea Goncalves, 16, uma jovem de cabelos lisos e pretos, de máscara, chora de olhos fechados e com expressão de grande dor, e é abraçada pela tia, uma mulher de meia idade e cabelos pretos, em frente a uma cruz de madeira azul que marca o túmulo da mãe, no cemitério Parque Taruma, em Manaus

Reuters
A manauara Kevia Gonçalves se apoia na tia, Vanderleia dos Reis, durante o enterro de sua mãe, Andreia dos Reis, umas das vítimas de covid-19 em Manaus

BBC News Brasil – Como a resposta do governo brasileiro se compara à de outros países?

Petherick – Criei alguns gráficos que mostram o número de mortes ao longo do tempo e a força das políticas de resposta em diferentes áreas, para diferentes países. Há um índice que reúne todas as políticas de fechamento – de escolas, de transporte, de locais de trabalho. E outro que acompanha as iniciativas de apoio econômico, incluindo alívio de obrigações financeiras das famílias e políticas de transferência de renda.

Assim, podemos acompanhar como esses diferentes aspectos da política de resposta à pandemia evoluíram ao longo do tempo. Fiz isso para o Brasil, os Estados Unidos – outro grande país que teve muitos casos da doença – e a África do Sul, que também está sofrendo com novas variantes e tem recursos econômicos limitados.

Observamos que o Brasil reduziu muito sua resposta econômica no período recente. Mas não houve aumento significativo no índice de medidas de contenção e fechamento, como vemos, por exemplo, na África do Sul, que também está passando por uma segunda onda. Já os Estados Unidos nunca reduziram substancialmente suas medidas de contenção e fechamento como o Brasil.

Então as políticas brasileiras de resposta à pandemia estão, de maneira geral, realmente sendo mais e mais reduzidas. Não apenas as respostas econômicas, mas as de contenção e fechamento, que impedem as pessoas de se misturarem.

Enquanto isso, o número de casos cresce em meio à segunda onda. Isso é muito preocupante e distingue o Brasil com relação a outros países.

BBC News Brasil – Há outros fatores que diferenciam o Brasil dos demais lugares?

Petherick – Outra coisa que observamos é que o Brasil é muito lento para responder. E sabemos que a velocidade de resposta tem forte influência em termos de taxa de mortalidade.

Um outro fator que distingue o Brasil é sua arquitetura institucional. O país tem um sistema federativo muito descentralizado e, diferentemente de outros sistemas federativos, como o Canadá, há muito pouca coordenação.

Profissional de saúde aplica vacina contra covid-19 em mulher em Manaus

Reuters
O Brasil começou a vacinação duas semanas depois de países como Reino Unido e Estados Unidos

BBC News Brasil – Há medidas que deveriam ter sido tomadas no Brasil e não foram? Em caso positivo, quais medidas?

Petherick – Com relação às medidas de fechamento, não há solução mágica. Não dá para fechar o transporte, por exemplo, e não fechar locais de trabalho. Isso não funciona.

A ideia dessas medidas é essencialmente impedir pessoas de domicílios diferentes de se misturar. Então não faz sentido fechar algumas coisas, se as pessoas ainda estão se encontrando de outras formas.

Há outras coisas que o Brasil definitivamente deveria ter feito. Uma delas está relacionada às campanhas de informação pública.

Minha equipe tem realizado pesquisas de opinião no Brasil. Fizemos uma grande pesquisa em nove capitais em maio e repetimos esse levantamento em agosto e setembro, para entender como as pessoas estavam entendendo as campanhas de informação pública.

O que nós encontramos é que as pessoas estão recebendo a informação. E, mesmo aquelas com baixa instrução, têm ótimo entendimento dos sintomas da covid e de como reconhecê-los. Mas, se você disser às pessoas que elas precisam se auto isolar, elas não têm ideia do que isso significa de fato.

Cerca de 95% das pessoas ouvidas na nossa pesquisa mais recente achavam que sair com uma máscara é OK, caso você esteja contagioso. Então, eu avalio que o conteúdo das campanhas de informação pública pode ser muito melhorado.

BBC News Brasil – Como a conduta do governo afeta a resposta da população às medidas de contenção da pandemia?

Petherick – Sabemos que as políticas governamentais têm forte impacto no comportamento da população. Nós olhamos para as estatísticas, comparando o momento em que as políticas foram introduzidas e como isso afetou a mobilidade das pessoas, monitorada a partir dos telefones celulares. Assim, podemos ver como isso mudou ao longo do tempo.

O que observamos é que, inicialmente, as pessoas mudaram muito seu comportamento, de maneira dramática. Mas há um tipo de fadiga comportamental. Então, com o tempo, mesmo com a manutenção das políticas, as pessoas se cansam e seu comportamento muda, reduzindo o isolamento.

Mas o que me parece realmente interessante é que, mesmo que a resposta das pessoas às políticas esteja diminuindo, elas nunca voltaram ao que era antes da introdução dessas medidas. Então, embora pareça que as pessoas estão levando suas vidas como antes, na verdade, os dados sugerem que não, e que elas ainda estão respondendo às políticas.

BBC News Brasil – Na sua avaliação, a situação atual em Manaus e a segunda onda da pandemia poderiam ter sido evitadas?

Petherick – Na minha percepção, teria sido muito difícil evitar completamente a segunda onda. Países europeus ricos também tiveram dificuldades, caso também do Reino Unido.

Mas muito poderia ter sido feito de forma diferente. Particularmente, por volta de setembro ou outubro, já havia sinais de alerta de que as coisas iriam piorar novamente. E os governos estaduais foram muito lentos em responder.

Também acredito que o governo federal poderia, de muitas maneiras distintas, ter exercido melhor um papel de coordenação. Divulgado mensagens muito mais claras sobre os problemas que o país estava enfrentando.